Em março de 2020, Portugal identificou o primeiro caso de Covid-19, ao qual se seguiu a decisão do governo de declarar o estado de emergência no país. O setor cultural foi um dos primeiros a adiar ou a cancelar espetáculos e exposições, fechar museus, bibliotecas, acervos e galerias. O país viveu mais de um ano com declarações sucessivas de estado de emergência e de calamidade, cuja implementação incidiu, entre outras, em medidas de circulação restritivas e, durante períodos longos, no encerramento dos espaços culturais.
A já conhecida precariedade e intermitência das condições de trabalho no sector da cultura aumentaram por isso com a pandemia. Nessa sequência, em Portugal e não só, surgiram novas formas de auto-organização, como estratégia de resistência e superação das situações de extrema pobreza, das condições contratuais de trabalho indefinidas e precárias, bem como da necessidade de continuar a criar e a assistir à produção artística e cultural. No plano das artes e da cultura, assistimos ao surgimento de novos coletivos, associações e cooperativas e a um aumento da sua articulação com a atividade sindical. No âmbito deste projeto foram identificados 19 grupos criados após março de 2020, constituídos por trabalhadores da cultura, incluindo artistas, com o propósito de responderem às condições de trabalho criadas pela pandemia. Pese embora existam diferenças e matizes várias nesses grupos, a motivação mais regular para a sua formação foi a luta por direitos laborais, melhores condições de trabalho e a identificação da importância da organização coletiva para a concretização dessas reivindicações.
O fenómeno do crescimento exponencial de grupos dessa natureza reforça a dimensão expressiva do coletivismo. No prisma de Judith Butler, essa performatividade pode ser um indicador de um novo entendimento do que constitui o espaço público, essencial para a formação do território político (Butler, 2015). Para esta autora, mais do que a dualidade do público versus privado, os bodies in alliance refletem sobre o que é público na sua dimensão espacial, sendo que a alliance é a criação de um espaço entre os corpos, que expressa publicamente as condições de precariedade dos seus intervenientes.
Uma das componentes da nossa investigação foi justamente analisar de que forma estes grupos cívicos produziram materialidades inerentes ao exercício/ posicionamento político – como foi a sua abordagem performativa na relação com o político e como foi o seu processo de relacionamento político a nível institucional. Com esse objetivo em mente, a nossa metodologia incluiu a recolha de documentos produzidos pelos grupos identificados, bem como de registos da expressão pública das suas intervenções (artigos de jornal, imagens, vídeos, áudios e outros materiais) – que acabaram por contribuir para a criação de um mapeamento das possíveis conectividades existentes entre eles.
A construção de um mapa, feito a partir da nossa análise e interpretação do objeto de estudo, foi feito progressivamente, ou seja, à medida que fomos estudando a expressão material, a artisticidade e os objetivos políticos das intervenções dos diferentes grupos cívicos, bem como as conexões entre si e os sindicatos já estabelecidos. Esse mapa terá uma versão portátil e com existência física.
Embora todos os grupos focados neste projeto tenham abordado a forma como o governo lidou com o setor cultural – insistindo na necessidade urgente de uma transformação política estrutural, – a abordagem de cada grupo revela uma pluralidade de vozes que nos interessou aprofundar. A identidade geral dos grupos, tanto ao nível ideológico, quanto ao nível das suas ações performativas com implementação pública foi diferente. Uma das componentes da nossa investigação foi o estudo da performatividade pública implicada no processo de luta e reivindicação política – o espaço de manifestações. O nosso coletivo de investigação identificou e mapeou diversas manifestações públicas, em praças, em frente a várias instituições, como o parlamento, em salas de espetáculo e em contexto virtual, nomeadamente através de eventos e salas de conversação em direto. Essa exposição corporal e performativa do poder popular constrói, em si,um espaço de uso, como refere Butler: “This performativity is not only speech, but the demands of bodily action, gesture, movement, congregation, persistence, and exposure to possible violence." (Butler, 2015, 75).
A pandemia de Covid-19 expôs o pior das políticas laborais neoliberais para o setor cultural, evidenciando também um conjunto de fragilidades sociais, que viriam a traduzir-se, uma vez mais, num discurso de crise. Em Portugal, os efeitos da gestão governamental da crise financeira de 2008 resultaram num agravamento das condições sociais e económicas da classe trabalhadora, que viu as suas condições de trabalho deterioradas – já que foram estes os mais sacrificados na gestão e pagamento da dívida internacional. Ao longo da crise pandémica, cresceu a intervenção política dos trabalhadores do setor cultural e, parte dessa energia, veio da força emergente dos grupos cívicos objeto do nosso estudo. As suas ações, muitas vezes articuladas com o trabalho de grupos já estabelecidos e com o sindicato CENA-STE, tiveram certamente impacto na forma como o Estado e as entidades patronais privadas entendem o setor cultural, assim como na forma como gerem e aplicam os direitos laborais. No geral, o coletivismo foi um fator preponderante nas ações desenvolvidas por todos os grupos cívicos. Contudo, também identificámos ao longo destes processos que, para alguns, a dinâmica de trabalho em conjunto fortaleceu os esforços e os resultados alcançados pelo grupo, enquanto para outros, isso acabou por levar à sua dissolução. Não obstante, e independentemente da extensão temporal da existência dos grupos cívicos em foco, o trabalho que realizaram foi um gatilho para a sensibilização e empoderamento dos agentes e atores culturais nas questões relacionadas com os modos de produção artística e do trabalho em geral.
A nossa abordagem teórica e científica pretende contribuir para uma leitura do político dentro destas formações híbridas coletivas e cívicas – uma massa de trabalhadores culturais, artistas, ativistas, muitas vezes fortalecidos por esse sentido criativo, visual ou performativo que é utilizado para protestar e reivindicar os seus direitos laborais.
Estabelecer ligações entre os grupos cívicos, reunir momentos e materialidades num mapa, como fizemos, pode ser entendido, como escreve Gregory Sholette, como uma forma de “assembling a montage of historical fissures” e “connecting these unblocked moments” do modo de expressão/ expressividade da classe trabalhadora e a história, ou as histórias de resistência efetiva ao capital, ao patriarcado, ao racismo ou ao nacionalismo. (Sholette, 2017, 195).
Como resposta às contingências do momento presente, e mais especificamente ao período de aproximadamente dois anos de crise pandémica (entre março de 2020 e o verão de 2022), esses coletivos têm ensaiado novas formas de criação, divulgação e fruição artísticas e culturais. O nosso coletivo de investigação estudou, analisou e interpretou o material recolhido - nomeadamente o conteúdo das entrevistas realizadas a quatro estudos de caso selecionados, bem como o conteúdo dos materiais de comunicação e difusão provenientes destes grupos ou que sobre eles foi produzido, propondo um mapeamento das relações entre eles. Foi fundamental, por isso, caracterizar exatamente o contexto de pandemia como meio de informar e impactar as estratégias, metodologias e ferramentas que foram mobilizadas – e consequentemente como estas irão interferir diretamente no atual panorama de crise que no meio artístico e setor cultural continua a perdurar.
A pertinência e o potencial científico, social e cultural do estudo deste fenómeno reside igualmente na coincidência temporal entre o tempo do estudo e o tempo de luta que esses grupos atravessaram. A investigação decorreu em sincronia com os seus processos de trabalho e as lutas envolvidas na criação de novos futuros – momentos de grande dinamismo social.
Percebemos que um estudo particular dentro de uma lente transdisciplinar – incluindo a História da Arte e os Estudos Artísticos, era de facto uma prioridade. Deste modo, tornou-se necessário analisar as práticas artísticas e os movimentos envolvidos nessas lutas, com foco especial na performatividade, nas formas de organização, nas estratégias políticas e artísticas adotadas – aferindo o real impacto que as suas ações podem ter tido na cultura e numa eventual mudança de atitude política ou de políticas culturais. Além disso, tornou-se essencial contextualizar esse repertório de lutas e de protesto, relativamente à história recente do ativismo artístico – usando, como referência, por exemplo, a crise financeira de 2008 e suas consequências.
Foi nesse sentido que o projeto de investigação Práticas Artísticas Confinadas: Resistência e Coletivismo na pandemia Covid-19 em Portugal adotou como objeto de estudo os coletivos e grupos cívicos criados por artistas e profissionais da cultura, que emergiram após março de 2020, com a intenção de responder à crise do Covid-19, através de uma prática politizada.
Bishop, Claire. 2012. Artificial Hells, Participatory art and the Politics of Specatorship, Verso, London, New York
Butler, Judith. 2015. Notes Towards a Performative Theory of Assembly, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts London, England
Kester, Grant H. 2014-15. On the Relationship Between Theory and Practice in Socially Engaged Art, in Future Imperfect, A Blade of Grass, p 96-101
Kester, Grant H. 2011. The One and the Many, Contemporary Collaborative Art in a Global Context. Durham and London: Duke University Press
Sholette, Gregory. 2017. Delirium and Resistance Activist Art and the Crisis of Capitalism in chapter 9 Dark Matter: Activist Art and the counter-Public Sphere (p 184-202), Pluto Press